
Seu primeiro nome era Maria, mas ninguém lembrava. Ou lembrava e não chamava. Não chamava porque não importava, era Rita e pronto [me disse ela].
Conheci Rita numa biblioteca, ela estava lendo a última página da biografia de Luis XIV [que ela me contou depois que era o monarca com o maior reinado da história da Europa]. Eu nunca tinha ouvido falar em Luis XIV, ela nunca tinha escutado uma música de Daft Punk. Rimos.
No coffe conversamos sobrehobbies quando descobri sua paixão: últimas palavras. Jornalista que era, me contou que últimas palavras inspiravam suas poesias. Eu, baixista que era, falei sobre as melodias mais magníficas que já foram criadas.
Passaram-se horas. Passaram-se dias. Noite. Telefonemas. Cinemas. Os meses corriam contra o tempo. Cheguei na biblioteca numa segunda feira e encontrei Rita lendo a mesma última página da biografia de Luis XIV. Era sempre ele.
Vez ou outra eu olhava e achava que era o mesmo livro, mas preferia pensar que não. Porque seria, afinal? Decidi perguntar. Rita me disse que, de todas as últimas palavras, a questão da sua vida se desprendeu das de Luis XIV: “Por que você chora? Você acha que eu deveria viver para sempre? Eu achava que morrer ia ser mais difícil”.
Ela se embolou em seus argumentos e disse que deveria ser difícil morrer, não por morrer, mas por ter que morrer e saber disso, e aceitar isso como se a casualidade da questão nos fosse imparcial. Mas não era. Rita nunca havia me olhado com aqueles olhos.
Ela sempre falava rápido e eu sempre ouvia, assentindo, mas não naquele dia. Ela me olhou baixo, sussurrou indagações e indignações, tocou-me a mão e falou: “Acho que disse o suficiente, assim como Marx”. Rita fechou a porta com uma leveza contemplável. Houve silêncio. E caixa de mensagem. E espera.
E lembrança. Rita nunca mais abriu aquela porta, nunca mais foi ler a última página da biografia de Luis XIV, nunca mais tropeçou nas palavras. Rita, que eu insistia em pensar como Maria. Só Maria, que era tão mais bonito.
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